Este domingo, fui convidado para ler pela segunda vez a segunda leitura da Bíblia na missa de Cura e Libertação do Santuário Santa Terezinha, em Taboão da Serra. Desta vez, eu fui pego meio de surpresa, muito embora confessasse que queria que isso acontecesse, quando fui pela manhã na Catequese de Adultos. Eu sentia que queria ler, mas ao mesmo tempo sentia que isso poderia estragar o meu dia porque eu tinha que arrumar alguns documentos para uma saída marcada para segunda-feira.
Por outro lado, minha vontade de fazer a leitura se apoiava em grande parte, sinto dizer, em alguma empáfia, como se eu ao fazer isso me mostrasse algo melhor do que o resto das pessoas. Não nego que pensei um pouco nisso no trajeto para a catequese, que ocorre às 8h perto da igreja, no centro de Taboão. Mas fui me esquecendo dessa minha vontade no decorrer do trajeto. E ao chegar, e ao encontrar o Igor, eu já tinha-me esquecido disso. Por outro lado, perguntei a ele se havia alguma novidade, e ele me disse que havia sido chamado para fazer a leitura dos comentários na missa.
Achei curioso como eu fiquei feliz na hora, por ele. Porque eu havia esquecido que eu queria falar, e por outro lado me lembrava da vontade de fazer a leitura. Fiquei assim, e entrei na sala da catequese. Foi quando, ao esperar todo mundo chegar, a Helena, esposa do diácono permanente, apareceu, disse bom dia, e eu meio inadvertidamente respondi. Foi quando ela me convidou na frente de todos para fazer a leitura.
Ela foi um pouco ambígua no convite, porque aparentemente poderia querer se referir a ler a Bíblia na catequese. Mas eu entendi e assenti. Não senti nada dentro de mim. Nada mesmo. Foi como se algo estivesse determinado de antemão. Foi muito estranho, porque eu topei, me voltei de novo de costas e fiquei comigo.
Não senti nenhuma sensação de agradecimento, nem de orgulho, nem nada mais. Simplesmente aconteceu. E eu noto agora que em geral as coisas que acontecem em minha vida simplesmente acontecem. É curioso como isso se dá. É estranho.
A catequese aconteceu, li uma vez trecho da Bíblia, ou duas, e fui me aprontando para sair. Eu imaginava que precisaria chegar bem cedo no Santuário, mas desta vez a Helena me disse para chegar apenas 15 min antes. Ocorre que quando estava saindo notei que minha cruz no pescoço havia se rompido, e eu não achava a cruz. Essa cruz em especial era importante para mim, porque era de Roma, havia sido do meu bisavô, no caso do avô de minha mãe, ele havia lhe dado, e ela me dera sabendo de minha conversão religiosa.
Ocorre que a cruz consiste de um pingente muito sensível, e sobre o qual eu havia inclusive pensado que ele podia se romper, naquela mesma manhã. Ocorre que eu não achava a cruz. Saí, percorri os trajetos novamente, mas nada. Fiquei meio chateado ou até mesmo meio apavorado. Fui ao banheiro do santuário para procurar por lá, e foi lá que encontrei a cruz em um bolso meu.
Foi assim que eu também perdi o pingente, que depois encontrei. Eu senti que aquela perda havia meio que colocado minha fé em questão, porque afinal de contas, o que é um pingente se não apenas um pingente? Seja como for, fiquei muito feliz ao encontrá-lo novamente. Coloquei a cruz em minha carteira, com o pingente, e fui para casa. Lá estando, tentei adiantar o trabalho que eu teria que oferecer na segunda-feira, mas não consegui muita coisa. Senti que eu precisava me aprontar, comer algo - almoçar - e me deixar pronto para um tempo suficiente para ir.
Troquei de roupa (parcialmente), e fui. Levei apenas um livro - a Bíblia, o Novo Testamento - e um caderno. Não me lembro de ter levado guarda-chuva, o que acho estranho, porque sempre o carrego. Quando cheguei, às 14h30 (o trabalho com o sujeito que canta músicas, porque o sistema é bem carismático), havia até bastante gente na igreja, que tem por volta de mil lugares.
Quando chego na igreja, naquela situação, eu fico meio ressabiado. Pois percebo que faço parte da cerimônia, mas preciso de alguém que me conduza até os lugares. Mas desta vez não achei ninguém, então esperei. Fico bastante rígido, como se estivesse esperando por minha vez de entrar, e não consigo me acostumar com o fato de que estou pessoalmente muito envolvido nisso tudo.
Fiquei de pé em algum canto por algum tempo; depois, entrei no sacrário, onde me ajoelhei e rezei um pouco; depois, fiquei vendo as pessoas se cumprimentando, e cumprimentando algumas delas. Um sujeito bastante forte, que faz parte do terço dos homens, foi cumprimentado por mim e notei que ele ficou feliz em me ver, até porque acho que ele imaginou que eu iria falar o trecho da Bíblia, e ele me elogiou anteriormente.
Ele disse que eu sei ler, de um jeito muito particular (como ele se expressou), e fiquei bastante feliz, porque ele também gosta de falar em público a palavra. Depois, fui notando que o tempo estava se aproximando daquele que a Helena havia me dito, então reparei na porta pela qual os ministros entram, e eu percebi que eles tocam a campainha e entram. Fiz o mesmo e entrei.
Uma coisa foi bastante interessante nesse momento em especial. Porque tão logo a gente entra a gente se depara com os armários em que estão as roupas que iremos vestir. Mas também estão ali algumas imagens de santas, e um lugar em que podemos ficar, esperando as pessoas se aprontarem. Não sei bem como isso se deu, mas de repente me senti em frente às imagens muito à vontade, como se eu devesse estar lá, como se eu fizesse parte daquilo, mas não enquanto leitor, enquanto padre mesmo, ou quase isso, e reparei como minha roupa combinava com a ocasião.
Fui sentindo algo do peso da idade, mas também algo que me convencia de que aquele lugar parecia realmente meu. Pois é estranho, eu uso as mesmas roupas em diversos lugares, mas em alguns eu me sinto eu mesmo, e em outros não. Pois encarei aquelas imagens, e reparei como aquele lugar, aquele recinto, é de certa forma proibido para as pessoas que estarão assistindo a missa, e como eu, por outro lado, tinha as imagens ali ao meu lado e reparei como elas significavam todo um passado, um saber que está nelas e que está no mundo.
Porque elas são apenas pedaços de pedra, é claro, mas por outro lado não são apenas isso. Elas significam alguma coisa, elas expressam imagens de santas, e vivências que as pessoas mesmas vivenciam e que portanto ajuda-as a se conduzirem no mundo. Daí que reparei como uma parecia santa terezinha, enquanto outra parecia maria, mas eu não tinha certeza.
Uma delas tinha um coração sangrando, e não sei por que pensei levemente que fosse Maria, mas eu não sabia, não tinha lido nem visto nada a respeito. A outra tinha uma coroa grande, e reparei que talvez fosse Fátima (e é). Entendi que eu estava diante das figuras de duas grandes santas, e de alguma forma fiquei levemente condoído com isso. Mas não me senti como um verdadeiro crente.
Eu naquele momento me senti como um homem de 50 anos, com roupa de um, e que estava esperando que as pessoas me dissessem o que fazer, mas sabendo que eu podia agir por mim mesmo, que foi o que fiz. Me vesti com a roupa do leitor, e conversei com um rapaz que vinha de Londrina e que iria ler a primeira parte da leitura, enquanto eu iria ficar com a segunda.
O rapaz em questão é padeiro, mora em Londrina mas nasceu e viveu em Taboão por muito tempo. O rapaz passa uma placidez estranha, quase homossexual, embora ele não tenha trejeitos. Parece uma pessoa bastante imbuída de fé. Ele já havia participado de algumas sessões na catequese, e mostrou um conhecimento bastante interessante e interessado da Bíblia e da liturgia.
Porque há quem esteja mais interessado na fé, enquanto outros estão mais interessados na palavra, e outros ainda mais na liturgia, no significado do que acontece na Igreja. No meu caso, eu não sei bem o que acontece. Noto como a liturgia tem significados interessantes de maneira geral, mas ao mesmo tempo eu me afasto da instituição por vezes, e não gosto tanto de tantos santos, tantos detalhes litúrgicos, tantas idas e vindas nos livrinhos que seguimos, e tudo mais.
Noto o quanto isso é importante, de certa forma, mas ao mesmo tempo sinto que é meio convenção. É como se fossem leis não escritas, que mudam pouca coisa na vida de quem tem realmente fé, embora conduzam as pessoas. Ele leu o trecho dele, bastante longo, e com alguma dificuldade. Passou-me o livrinho para eu ler o meu trecho, e de repente senti que o trecho - da carta aos Efésios - me tocava fundo.
De alguma forma, por breves instantes, eu me emocionei. Mas li com tranquilidade, embora tivesse alguns trechos um pouco difíceis, com um português escorreito, mas um pouco ultrapassado. Na conversa que tive com ele, pude verificar o quanto as condições privilegiam-nos ou não para alcançarmos certos patamares que queremos alcançar.
Mas eu havia me esquecido. Pouco antes de falar com esse rapaz, falei com outro, que fazia outro tipo de atividade na cerimônia. Num determinado momento, ele me perguntou quanto à minha vocação - espiritual -, usando algumas palavras bastante fortes, porque significavam bastante mais em mim. Na hora, me senti quase lisonjeado, quase estranhado, porque jamais imaginei que eu pudesse ter vocação desse tipo.
Mas de alguma forma sentia que isso tinha algo realmente a ver comigo. Porque, quando pensei em ter vida acadêmica, era em parte por eu sentir que esse tipo de vida era quase monástica, sacerdotal, dedicada ao saber, indicada a ele, e que era isso o que me atraía em grande parte a essa vida. Tanto que quando fui jogado fora dela eu senti como se algo muito profundo me tivesse sido tirado, e não apenas uma carreira acadêmica.
Senti como se meu próprio fulcro enquanto pessoa e pensador me tivesse sido retirado, e todo meu esforço a seguir foi no sentido de criar uma biblioteca que pudesse fazer jus àquilo que eu ainda sentia, e sobre o que eu ainda queria escrever, porque era isso o que mais interessava.
Expressar o sentido do mundo com base naquilo que eu sentia.
Ocorre que agora, ao me deixar levar pelas leituras da Bíblia, e ao me deixar levar pela fé, noto que por um lado o que eu sinto é de certa forma menor, por não ter o mesmo peso de antes, mas que também é maior, porque muito do que vejo me incomoda, e a ele não sei bem como reagir (embora já esteja conseguindo). Por outro lado, isso a que me dedico é ainda tão forte quanto a academia havia sido para mim, mas tem um caráter eminentemente sagrado e aceito por todos, e nesse sentido se torna ainda maior para mim.
Porque noto que, se há algo que convence, pode estar restrito a uma espécie de show ou a iniciativas individuais que devem radicar em crenças e mesmo em superstições, mas que estão no fundo do coração das pessoas. Tanto que percebo que, avançando no sentido da fé, a gente sempre percebe uma maior sabedoria das coisas, e isso me motiva também cada vez mais.
Uma espécie de lupa sobre o ser humano, algo que nos faz crescer cada vez mais dentro de nós e também para fora de nós. Algo também que está para fora dos escritos, que para mim mais se tornam testemunho, e menos real significado do amor, que a gente percebe o tempo todo na nossa vida.
Fui percebendo isso naquele dia, enquanto conversava com o garoto, que tinha um jeito bastante especial, e enquanto eu conversava comigo mesmo e me deixava levar pela situação. Percebi também muito quando encontrei uma moça no ponto de ônibus, que havia assistido à missa e que parecia ter uma ideia bastante clara de como eu me sentira na hora, e de como deveria se encontrar meu espírito em minha evolução espiritual.
As pessoas foram então aparecendo, e eu percebendo em especial a presença de um senhor, com vestimenta toda branca, que ao mesmo tempo em que passava uma rigidez muito grande, quase cadavérica, expressava uma entrega muito solene ao seu papel e à sua fé.
O sujeito parecia quase um guarda-costas, mas de alguma forma expressava também uma seriedade muito grande, em seu papel e em seu jeito de ser. Notei a sua presença em toda a cerimônia, e percebi como aquilo me expressava uma grande lucidez e dignidade - faltava essa palavra -, algo que ele não perdeu em nenhum momento da missa. Inclusive vi-o ajoelhado em determinadas situações e momentos de forma tal que percebi que sua fé parecia muito intensa e forte, e que ele não expressava nada além disso.
Cheguei a me admirar de sua participação em tudo. Pois percebi que havia outros que tinham um jeito menos intenso, menos de entrega, e que por vezes se esqueciam de sua presença, ali, enquanto ele, não, ele estava o tempo todo presente e entregue à fé. Essa entrega me é muito interessante, porque se há sentido pelo qual passei em toda minha vida é o da entrega, à profissão, ao casamento, à família, ao estudo e tudo mais, e porque se há forma pela qual eu me perco é pela pouca entrega, por vezes, a tudo o que faço e que penso e que sinto.
Eu busco e sempre busquei realmente me entregar àquilo que faço e àquilo que penso, e neste sentido a entrega, sendo espiritual, é ainda maior, dado que eu já acredito nela, e percebo em que ela consiste, de fato. Por outro lado, em meu caso eu sinto tudo ainda meio confuso, porque tenho um profundo desejo de entrega, mas por outro lado insisto em pensar tudo do meu jeito, e de forma bastante agressiva, e por outro lado não nego meu desejo de conhecer, embora ele tenha mudado de lado - da filosofia especulativa, entrou em algo que diz respeito à filosofia de vida, mas ligada a certas convicções que não me abandonam, como uma espécie de distanciamento da vida em si, e superação das condições menores por algo que dê sentido ao dia a dia, e que se afaste de jeitos menos profundos de entender as experiências.
É como se algo me conduzisse a uma espécie de busca de santidade distanciada de qualquer sentido externo, de qualquer cargo, de qualquer intromissão das instituições em nossas vidas. Porque sinto que existe uma inserção indevida de muitas coisas às quais consultamos, como se quisessem mandar em nós, e eu considero que em termos de fé nada deve nos mandar, mas apenas nossa entrega a ela, e às pessoas que nos conduzem nessa direção.
Percebi que a atividade da cerimônia começava, e nos direcionamos ao lugar em que descemos. Pela primeira vez, percebi com uma certa apreensão que eu estava sendo visto, e que pessoas que poderiam me conhecer poderiam me ver na procissão, e percebi que isso, se por um lado não me importava, por outro me fazia aparecer enquanto pessoa, enquanto indivíduo, numa cerimônia pública com um sentido específico.
Nesse sentido, era como se eu concordasse com aquilo, o que era de alguma forma verdade, mas também como se percebesse o sentido de tudo o que acontecia, o que era meio mentira, porque o tempo todo eu fico tentando captar a verdadeira fé dedicada àquilo. Ou seja, permaneço em dúvida quanto àquilo que vejo, como se não fizesse tanto parte de mim.
O tempo todo permaneço percebendo o que acontece meio que de fora, e me abandono em muito poucas situações e momentos. Na verdade, é como se eu estivesse, assim como participante, como espectador. Como se eu duvidasse um pouco daquilo. Talvez por note que muito da entrega que eu vejo parece restrito a questões de psicologia, e não de foro íntimo, embora isso seja pouco, também.
Daí que enquanto eu vejo tudo se desenrolando, eu me abandono a pensamentos a respeito, mas também me distancio e não me considero absolutamente ligado ao que acontece. Assumo tudo com bastante distanciamento, o que me deixa meio afastado das pessoas, de forma geral, mas também dos que me rodeiam.
Na hora de subir para falar, então, houve momentos em que me deixei levar pelo sentimento, mas tive que me restringir nisso ao meu foro íntimo, e a não questionar nada do que acontecia em mim. Porque eu tinha que falar, e nesse sentido eu falei como devido, com bastante solenidade, mas também com um jeito suave de falar, porque por vezes acabo sendo formal demais, meio ríspido, até.
Os momentos antes da entrada foram bastante interessantes. O meu colega leu a primeira leitura, bastante longa. Não ouvi com muita atenção, mas reparei que as pessoas estavam um pouco alheias, que porém não pareciam se esforçar para ouvir e entender, e que poucas estavam realmente presentes enquanto tentando compreender o trecho do Novo Testamento. Reparei nisso estando atrás dele e da moça que conduzia o microfone.
Isso fez com que eu ficasse meio estranhado com a missa, tal qual ocorria. Parecia-me que eu estava mais numa cerimônia com passos marcados do que em algo que estava sendo usufruído. Mas eu havia treinado um pouco com o texto, então me concentrei em minha parte. Logo em seguida, veio a cantoria de um Salmo, não sei qual, conduzida pelo sujeito bastante alto que tinha um porte considerável e uma voz aparentemente de barítono que ele por vezes exigia bastante, como aquelas missas do Padre Marcelo Rossi, nas quais ele se esgoela pedindo a participação, ou quase exigindo-a.
Mas o salmo a ser cantado era bem bonito, com estrofes curtas e fáceis de decorar, e notei que as pessoas o conseguiam, até melhor do que eu. Daí a entrar no clima e gostar do tom que o cantor dava a tudo e da participação discreta das pessoas foi um passo.
Eu estava nessa, havia realmente embarcado no clima, olhando as pessoas, quando repentinamente acabou, e eu fui convidado a ler o meu trecho da carta aos Efésios. Reparem que nessa missa era celebrada a Ascensão de Jesus Cristo, e que portanto a missa tinha um valor aparentemente bem maior que as missas comuns.
O meu trecho era não muito longo. Não sei se vocês sabem, mas o livro, quando a gente o lê, está dividido em estrofes, o que ajuda a leitura. O livro da liturgia é vermelho, grosso e bem impressionante, e é ele que nós lemos, não os livrinhos que se vendem nas livrarias. A moça do microfone me mostrou o trecho e lá fui eu ler.
Pela primeira vez, não olhei para a frente, para o público, para as pessoas. Concentrei-me apenas em ler o texto, com vagar e bem lido, de forma a que todos pudessem entender. É curioso, mas naquele momento é como se o tempo parasse, como se eu fosse convidado a fazer algo que nada no mundo poderia interromper, e como se as pessoas fossem minhas testemunhas, ao eu ser o testemunha de ler o texto.
Fiz a leitura o melhor que pude, sem muita força e utilizando alguns recursos retóricos de leitura, de modo a tudo ficar bastante claro para todos. E assim foi. Durou apenas uns poucos minutos. Notei que as pessoas estavam concentradas em mim, nas minhas palavras, e que a Helena gostou de como eu li o trecho respectivo.
Um aspecto relevante é que essa missa é a mais concorrida da semana. Ela ocorre às 15h, no domingo, e tem a denominação de missa de Cura e Libertação. É a missa que mais demora, nas celebrações do santuário, e sempre vi ela lotada. O lugar, um dia contei, tem espaço para mais de mil pessoas, e quando a missa está no auge, num bom dia, não sobra espaço para quase ninguém a mais. Inclusive o sacrário fica lotado, onde também ocorre a distribuição das hóstias consagradas.
Mas eu já me acostumei a plateias. Logo eu, que tanto medo tinha de falar na frente. Pois quando, a partir de 2011, eu me dediquei a fazer oficinas de atuação, virei aos poucos ator, enfrentando o público de perto ou de longe, sem fazer quase menção dele. Ocorre que numa missa a comunhão com o público é ainda maior. Não sei bem explicar por quê.
Talvez seja porque as pessoas não estão no fundo tão interessadas em você, no palco, ou no que vc diz, mas naquilo que elas próprias vêem da cerimônia, nos pedidos que elas vão consagrar a Deus naquela ocasião, ou no diálogo que elas estão fazendo com Deus por meio da cerimônia.
Não digo que as missas sejam tranquilas, normalmente elas incluem bastante barulho e mesmo alguma confusão, mas há um foco todo especial nelas, que é Deus, Jesus ou seja lá o que for que a pessoa está pensando. Claro que tudo é de certa forma bastante previsível. Nesse sentido, o fato de estar lendo a Bíblia é por muitos encarado como um grande privilégio, mas você ali é apenas um coadjuvante.
O centro das atenções não é você, e mais ainda, você não deve de forma alguma tentar chamar as atenções para você. É como se você estivesse lá, sim, mas também como se não estivesse. Por outro lado, as pessoas não reparam muito em você. Todo mundo faz o seu papel e o que importa é a mensagem em si, a consagração e a comunhão que ocorre depois. Só isso.
Saí do presbitério, acompanhado pelo meu colega, e nos postamos ao lado direito dele, tendo visto a Helena me olhar, com um olhar de aquiescência. Ela havia gostado de como eu falara. Depois, seu marido, o diácono Otávio, subiu e falou o trecho do Novo Testamento, com uma abertura típica de missa, mas reparei que ele sentia que não falava tão bem quanto eu - desculpem, mas é fato. Depois foi acontecendo a missa em si mesma.
Eu fiquei ali, naquela posição, de pé o tempo todo, e prestando atenção à fala do padre Eusébio, mas ao mesmo tempo pensando em tudo quanto aquilo dura, e na atenção das pessoas, que parecem absortas por algo que elas querem ouvir, mas que, eu noto, nem sempre lhes acrescenta. Mas o padre é bom, e consegue passar sua mensagem.
Nesta ocasião, ele falou do momento da missa, daquilo que ela representa, e da importância de certas posturas na atitude do cristão e do católico. Claro que essas mensagens são em geral muito parecidas, umas com as outras, mas para algumas pessoas essas mensagens são as únicas que elas têm na semana, e notei que as pessoas presentes dão bastante importância a tudo aquilo.
Em missas anteriores, eu pensava como é que as pessoas podiam dar tanta relevância a mensagens tão simples e mesmo pouco complexas e distanciadas da realidade de muitos, mas o fato é que as pessoas estão preparadas para aquele tipo de mensagem, e somente para aquele tipo. Não querem saber de muitas elucubrações. Precisam de mensagens simples e claras, tendo como base os ensinamentos cristãos. Sendo assim, é o que as pessoas estão prontas e dispostas a ouvir, apenas isso.
A missa foi então acontecendo e os passos se sucedendo. Mas eu com o tempo me distanciava mais e mais dela. Sentia o peso de ficar em pé, sentia que me distanciava de tudo aquilo, sentia que as pessoas estavam mais distantes, embora elas estivessem próximas, e começava a lutar com minha fé. Eu sentia que queria me abandonar à cerimônia, mas que por um lado não conseguia, tinha dificuldades em me manter concentrado, e mesmo assomavam-se dúvidas na minha mente.
Pensava em tudo aquilo como que de fora, e sentia-me mais e mais incomodado naquela situação. Por outro lado, via pessoas dedicando gestos à fé, e isso me animava temporariamente ao menos um pouco. Mas depois via a multidão e guardava para mim dúvidas e com isso teimava em me afastar. Era como em shows que frequentei, nos quais me afastava cada vez mais, sem ficar muito à vontade no meio de certas plateias.
Nessas ocasiões, permanecia distante, tomando uma cerveja, ou um refrigerante, e olhando tudo de longe, como espectador. Neste caso, eu estava dentro do show, mas olhava tudo meio que de longe. Por outro lado, surgiam momentos de fé, e eu a eles me abandonava. Mas eram momentos esparsos, que não me faziam ficar realmente à vontade.
Os outros membros da cerimônia permaneciam o tempo todo concentrados nela, mas eu não, permanecia num canto, apoiado numa parede, olhando para tudo e de vez em quando reparando em algo interessante. Era como se eu estivesse ali mas também não estivesse.
Quando ocorreu o momento da comunhão, fui lá comungar como sempre, e reparei que a hóstia era um pouco diferente, sendo pedaço da hóstia maior, e com isso sendo mais rústica. Foi o próprio padre que nos deu essa hóstia. Ajoelhei e rezei, mas estava bastante confuso com tanta cerimônia e agitação, então não aproveitei muito bem a ocasião para rezar. Fiquei o tempo todo meio alheio.
Naquela posição, porém, eu tinha receio de causar má impressão. Então, se me apoiava na parede, eu não o fazia de forma muito acintosa. E se permanecia alheio, meu corpo estava lá, firme, e se eu lutava arduamente para entrar realmente na missa, não aparentava. Eu me concentrava na fala do padre, de vez em quando via alguém mais próximo, ou olhava alguém mais distante, mas permanecia impassível.
Nesse momento, reparei em como o rapaz que lera a primeira parte fazia gestos de fé que me mostravam algo bonito. Mas eu mesmo não os repetia. Eu tenho uma forma creio mais fria de me dedicar àquilo em que acredito, e não recuso continuar sendo como sou. Por exemplo, quando vou ao sacrário, por vezes me ajoelho de forma a que doa ao menos um pouco, assim como faço isso nas missas.
Ou, quando vou à lanchonete, pego o trecho da Bíblia do dia e o leio e escrevo algo a respeito, ou não, ou seja, coisas quaisquer, como um monge beneditino uma vez disse que haviam sido seus exercícios antes de se tornar o que é. Por outro lado, quando vou às missas, muito frequentemente eu saio, vou à livraria olhar os livros ou simplesmente zanzar e volto apenas para o momento da comunhão.
Eu muitas vezes não gosto de tanta fala, de tanta coisa falada daquele jeito, eu sou mais duro, creio, e não gosto muito daquilo. Daí que me afasto, porque todo aquele sistema carismático não me anima, realmente. Vejo as pessoas presas a coisas que não me agradam, especialmente depois, e isso me irrita um pouco. Mas vejo hoje o mérito de tudo aquilo, claro. Simplesmente não embarco em tudo.
Como era uma ocasião especial, a Ascensão, e por outro lado como era a missa de Cura e Libertação, o círio iria percorrer toda a igreja, como sempre acontece, e assim aconteceu. O padre Eusébio levou então o círio em todo o trajeto, e isso é bastante surpreendente, porque todas as pessoas se dirigem a ele, cantando muito alto, como um mar em direção a um mesmo lugar, as pessoas levantam seus documentos, ou colocam as mãos em posição de recebimento, e isso ocorre por muito tempo, pois o círio precisa percorrer todo o recinto.
As pessoas se avolumam ao redor dele, tocam-no de leve, apresentam seus documentos, e assim tudo acontece, por pelo menos uma meia hora. Nesse período, eu permaneci parado, olhando para a mesma direção, às vezes quase inadvertidamente - como se meus pés se dirigissem até lá, mesmo sem eu mandar -, e de vez em quando levantando minha mão, mas nesses momentos com vontade.
As canções emocionam, sempre, mas eu me mantenho preso a mim mesmo, com receio de expressar uma fé que tenho forte em mim. Não sei por que isso acontece. Talvez receio de me emocionar, ou receio de demonstrar a pessoas desconhecidas algo que é meu, ou receio de passar ridículo, como se isso fosse ridículo, o que não é.
Ou seja, embarcava nessa, mesmo afastado, distanciado de muito do que via. Na verdade, aquele espetáculo me anima, por um lado, comove, por outro, mas me deixa também dividido, porque sinto que algumas demonstrações não têm mesmo nada a ver, e creio que a fé é deixada para trás por muito tempo, e tudo vira pedido, e solicitação, e súplicas, algo que me irrita um pouco. Pois creio que a diferença entre razão e emoção está mesmo na fé, simplesmente.
Ou seja, a razão busca provas, não se apoia em algo que não vê, e a fé é o sustentáculo da emoção, que acredita mesmo sem ter provas (está em Hebreus). Ou seja, sinto que todas aquelas súplicas meio que não têm mesmo lugar, na medida em que expressam pedidos puros e simples, e que parecem não apoiar-se na fé nem colocá-la acima de seus problemas. O mesmo acontece - meu incômodo - quando as pessoas buscam bênçãos, como se isso fosse ser algo mais do que simplesmente é, uma vontade de bem. Não vejo graça naquilo, abençoar carro, documento, nem nada.
Noto por exemplo que nos Evangelhos a bênção tem um poder muito maior e ao mesmo tempo bem menos complexo. Pois noto que as pessoas ficam muito presas às suas coisas, deixando o caráter religioso para trás, como se fosse menos importante. Mas não desprezo isso. Simplesmente acho fora do tom.
Quando chega ao fim, a missa assume um caráter bastante próximo ao de um show qualquer. As pessoas que comungaram já se aquietam, daí surge o momento das comunicações finais, e o padre fala de jantar, fala de coisas a serem vendidas na loja do santuário, as pessoas já desabafaram de alguma forma, e tudo assume um outro clima, de algo que já foi.
Nesse momento, as pessoas meio que estão mais leves, como se já tivessem dado demonstrações a si mesmas e aos outros de suas fés, e nesse momento eu sinto que as pessoas da cerimônia se olham, reconhecendo-se após uma cerimônia que chega ao fim. O padre pede que mostremos algumas camisetas, que ele joga à multidão, e depois os padres e o diácono jogam água na multidão.
Todo mundo está de bom humor, sendo que eu não vejo a hora de ir embora. Pego rumo ao local onde está o vestiário, o diácono então aparece e cumprimenta a forma como eu li o meu trecho da Bíblia. As pessoas vão então se despedindo, e eu subo em direção a uma saída mais distanciada. Vejo as pessoas abandonando o recinto, e meio que clamo em meu interior por um momento de calma, em que eu possa relaxar e sentir minha fé de forma mais intensa.
Naquele momento o que eu quero mesmo é ficar sozinho, distanciado, após esse show do qual participei mas no qual embarquei apenas parcialmente. Porque me sinto mais acabrunhado, sinto que a fé em mim é mais grave, não tão para fora, embora antes tudo aquilo me causasse má impressão, o que hoje não acontece.
Na verdade, também, quando participo como uma pessoa comum eu de certa forma me sinto até melhor, porque posso fazer gestos de crença que não estão meio que contidos pela função que eu assumo, quando participo na cerimônia. Eu realmente gosto quando me abandono, se querem saber.
Termino comentando uma coisa que me acontece quando chego em casa. Não naquela vez, mas sempre. Eu sofro de esquizofrenia, como vocês sabem. Pois bem. Ocorre que, embora ouça rock de vez em quando, a música normal não me causa tão bem quanto a música gospel que toca na rádio do santuário.
Eu realmente me sinto palpavelmente muito melhor quando ouço quase qualquer música que rola ali. E é estranho, porque realmente preciso daquilo. As músicas ditas normais meio que não entram em mim da mesma forma. Eu as vejo de outra forma, hoje, digamos que há alguns meses. Claro que nem por isso eu me sinto muito diferente, mas sensivelmente eu hoje preciso desse tipo de música. As outras, por outro lado, meio que me causam mal, algo que eu jamais imaginaria que fosse acontecer, mas acontece.