Jesus continua tentando expressar o que seria o Reino de Deus. Neste ponto, ele se pergunta, como se não soubesse, ou como se estivesse criando imagens para nossos olhos. Porque nós somos quem não parece enxergar. Ou seja, precisamos de ajuda. E Jesus pretende nos explicar para nos motivar. Ele diz buscar algo com que se possa comparar o Reino de Deus, diz buscar uma parábola que nos permita aceder mais facilmente à ideia e à realidade do Reino de Deus. Curioso é como ele escolhe então coisas pequenas para nos dizer de grandezas, de coisas grandes, de coisas que irão preencher a Terra. Ele escolhe então a semente de mostarda, que ele diz ser a menor de todas. Na terra inteira.
Claro que isso não é literal. A semente de mostarda não é a menor de todas. Mas é muito pequena. E dá origem a árvores frondosas e muito grandes, com grandes copas. A mostarda aqui não está simbolizando a árvore grande, porém. O que chama a atenção a Jesus é a pequenez da semente, e semente é algo que precisa de solo fértil para conseguir vingar. Uma coisinha pequena, frágil, que em condições favoráveis dá muito mais do que podemos imaginar. Uma coisinha escura, que é o Reino de Deus. Ou seja, não é que o Reino de Deus seja a árvore frondosa, ou o domínio sobre a Terra. O Reino de Deus é a semente pequenininha, é aquela coisinha que se tornará frondosa. O Reino de Deus então é como a mostarda, que cresce e que se torna maior que todas as outras plantas. Jesus também fala dos ramos que surgem dela, nos quais se aninham os pássaros, e em sua sombra. Ou seja, uma coisinha pequena que é semeada e que dá origem a tudo o que podemos imaginar.
É dito que Jesus explicava tudo o que dizia respeito à Palavra por meio de parábolas. Isso para quem quisesse ou pudesse compreender. Mas havia uma distinção: à multidão ele só dizia parábolas, enquanto aos discípulos ele as explicava. Aqui eu noto como a gente muitas vezes ouve as coisas que mais importam mas que não conseguimos decifrar. Por outro lado, percebemos também como precisamos de alguém que nos explique, quando isso é muito importante. Aqui, Jesus só explica mesmo para quem o segue, para os discípulos, e percebemos também então como as pessoas que seguem Jesus explicam para os outros, para quem de alguma forma abre a mente e o coração à Palavra, enquanto os outros são mantidos distantes, dado que não querem entender.
O relato aparece entremeado de ação, contudo. Aqui, a tarde chega e Jesus diz a seus discípulos para irem para o outro lado do mar. Aqui a gente sente que ele quer espalhar a boa nova, e que para isso é preciso abandonar a multidão e ir para o outro lado, numa barca que é seguida por outros. A gente percebe o relato claramente, como se estivéssemos presentes, e como se ele, o relato, quisesse sempre dizer algo mais. Ficamos quase possuídos pela curiosidade de saber no que tudo vai dar afinal, quando Jesus aos poucos revela o desenlace, que cria consternação. O tempo passa, contudo, de forma que mal percebemos, e sentimos aquele momento em que a água invade a barca, com Jesus dormindo. Pois nem sentimos o tempo passar, e percebemos o quanto os episódios chamam a atenção pelo simples fato de expressarem verdades. Pois nós sempre buscamos algo mais nos relatos, algo que nos faça sair do sentido simples e claro que está logo ali.
Porque somos pessoas reais, com dificuldades reais e com muita dificuldade em conseguir sair delas, até porque muitas vezes sentimos essas dificuldades como se fossem fenômenos da natureza ou outra forma de dizermos destino. Pois é aqui justamente que Jesus, dormindo e na barca, é acordado pelos discípulos que lhe perguntam se ele irá deixá-los morrer (notem que eles sequer se referem a ele, Jesus). Pois aqui, para podermos refletir melhor, temos que nos enxergar quando enfrentamos situações que parecem nos superar amplamente, e nas quais perguntamos a Jesus ou a Deus, o que é a mesma coisa, se ele irá deixar que morramos. Pois Jesus acorda, levanta-se e acalma o vento e o mar, de forma imperativa. Pois nisso percebemos que Jesus mostra seu poder, mas que não é o que ele é, mas o que ele expressa, seu poder, que tanto maravilham os discípulos. Porque eles são homens medrosos, que ainda não têm fé, embora vejam tudo o que passa diante de seus olhos. Pois normalmente acontece assim. A gente vê claramente, mas mesmo assim duvida e não acredita, e tem medo. Nosso medo no fundo radica de nossa ausência de fé. Note-se também que os discípulos, quando vêm o que ele fez, ficam com medo e comentam entre si como o vento e o mar obedecem a Jesus. Porque eles não conseguem adentrar ainda mais nos mistérios e em sua fé. Eles como que permanecem de fora, observando tudo, e duvidando de tudo.
Estamos no quinto capítulo (de dezesseis) do Evangelho. Neste ponto, como que a história para um pouco, para nos concentrarmos num episódio em que um sujeito possuído se aproxima de Jesus e algo acontece (aquela retirada do espírito para os porcos e estes para o mar). O episódio é contado em minúcias, é bastante longo, e precisa de maior profundidade para mostrar a que veio.
Primeiro, é preciso que tentemos entender o que seria esse tipo de possessão, da qual muitos duvidam. A narrativa mostra um homem possuído por um espírito mau que teria saído de um cemitério e ido ao encontro de Jesus. A narrativa diz que o homem morava no meio dos túmulos e que ninguém conseguia amarrá-lo, rompendo todas as formas pelas quais as pessoas tentavam controlá-lo. Ele vagava por entre os túmulos e os montes, gritando e ferindo-se com pedras.
Percebemos que o homem é um sujeito fora de si, que não tem controle de si mesmo e que busca seu próprio mal, assim como provavelmente o das outras pessoas. A narrativa diz, porém, que o homem vai ao encontro de Jesus. Jesus nesse caso teria algo em si que o homem reconheceria como superior, caindo prostrado diante de Jesus, gritando para saber o que haveria entre ele e Jesus, e pedindo que não o atormentasse. Curioso nesse momento como eu mesmo já experimentei momentos em que sentia que Deus tinha algo contra mim, e que eu não queria sua presença, pois teria escolhido o caminho do mal, da loucura, da perdição para mim mesmo. Percebo também como, entre pessoas que passam por penúrias, muitas vezes elas percebem que a voz de Deus lhes é incômoda, como se as atormentasse. Claro que os casos variam muito, mas neste caso é interessante notar como o próprio homem se aproxima de Jesus e o reconhece, e reconhece seu estado de perdição, de loucura, de endemoninhamento.
Segundo o relato, o homem teria dito, contudo, tudo isso na medida em que teria sido abordado por Jesus, este pedindo que o demônio saísse do homem. Mas Jesus pergunta seu nome, e advém o caso do nome chamado Legião, que eram muitos. Na narrativa, o demônio pede que Jesus não o expulse da região. Nota-se então que a saída é jogar o espírito nos porcos, numa manada, que rondava por ali perto. Quem pede isso é o próprio demônio, quase compassivamente. Eis que eles, os demônios, saem do homem, vão aos porcos, mais de dois mil, que por sua vez se jogam ao mar e se afogam.
Essa narrativa parece simples, na medida em que vemos simplesmente como Jesus tira o demônio do homem, e faz com que ele saia e caia no mar. Por outro lado, vemos que existe algo no homem que requer isso. Pois Jesus meio que percebe que os demônios não eram realmente o homem, que este estava possuído, mas que não era isso que todo mundo esperava que fosse. É como quando vemos alguém dominado por um vício, confundindo-se com ele. E quando vemos a pessoa se libertando do vício, e agradecendo a Deus pela libertação. Por outro lado, percebe-se como a pessoa que se liberta do vício encontra a si mesma, e se reconhece, pois o vício a dominava e fazia com que ela se comportasse como endemoninhada. Pois percebemos similitudes entre isso, e também percebemos o papel de Deus na libertação de pessoas nessas condições. Pois notamos que isso não é à toa, e que tem muito a ver com a condição do homem aqui, o endemoninhado, dominado pelo demônio chamado Legião. Ocorre que Jesus deixa que ele saia do homem, e que se jogue nos porcos, obedecendo ao pedido do demônio. Pois o demônio não queria sair daquela região, talvez por ter criado uma espécie de ligação com ela. Percebemos como tudo isso que vemos não é à toa, e como tem a ver com eventos que nós mesmos podemos experimentar.
É bastante curioso que, a seguir, quando os moradores do local percebem o que aconteceu, fiquem com medo e que peçam (supliquem) para que Jesus vá embora do local. Jesus não reage, vai embora, entra na barca, mas notamos como as pessoas não querem que ele fique, porque têm medo do que aconteceu e do que Jesus possa ser para eles, quando na verdade deveriam ficar alegres com isso. Ocorre então que o homem endemoninhado quer entrar na barca e ir com Jesus, mas que este não deixa mas lhe pede que volte para os seus e que anuncie tudo o que o Senhor fez por ele. Pois então o homem faz o que Jesus pede, e percebemos como isso parece-se com os relatos de pessoas anteriormente dominadas por vícios e salvas por Deus, que anunciam para todos o que aconteceu. Mas note-se que Jesus não quer que ele o siga. É como se o homem estivesse maculado, e fosse mais útil anunciando o que lhe aconteceu. Sinto-me quase dessa forma, e percebo o que acontece também da mesma forma. A admiração dos outros também é de notar, na medida em que o homem mostra uma espécie de milagre que lhe aconteceu por intermédio de Jesus.
Vemos em seguida Jesus entrando na barca e indo em direção ao outro lado do mar. Notamos como isso é comum, Jesus entrar na barca, ora para ficar sozinho, ora para ser ouvido pelas multidões, mas também que ele entra na barca como que para escapar do assédio das pessoas, que são numerosas. É quando vemos, enquanto Jesus está na praia, Jairo chegando e implorando, aos seus pés, para que ele fosse ver a filha dele, que estava agonizando. Tudo acontece na sequência. Uma mulher com doença chega e se aproxima de Jesus, pegando em sua roupa, para ser curada.
Notamos como Jesus interpela os discípulos para saber quem fez o que ele acabou fazendo por alguém. Ela se aproxima, e com medo explica o que aconteceu. Jesus lhe diz que sua fé a curou. Note-se que a mulher sofria de hemorragia, que ela havia gasto tudo que tinha, que não havia surtido efeito, e que ela havia ouvido falar de Jesus. Pois notamos que não necessariamente ela acreditava em Jesus, ela sentia que ele podia curá-la, apenas isso. Notamos também que, ao ela se expor, ele lhe diz que sua fé a havia curado, e que estava tudo bem. Pois é como se Jesus tivesse uma força que auferisse com o correr de sua vida, e que avaliasse na relação com as pessoas que se aproximavam dele. É como se ele tivesse um poder sobrenatural, algo que outros poderiam sentir.
Em seguida, vemos Jesus chegando à casa de Jairo. Vemos que os recebem com incredulidade, como se a mocinha já morta, impedisse alguém de pensar em algo para salvá-la. Vemos que as pessoas desacreditam que algo possa vir a ser feito. E vemos também que Jesus entra com ele e alguns discípulos, e que também zombam dele, quando ele lhes diz que a mocinha está apenas dormindo. Vemos graficamente em seguida a Jesus levantando a menina pela mão, pedindo-lhe ou ordenando-lhe que se levante, e ela faz isso. Por sua vez, a menina não fala nada, e percebemos tudo com estranheza, como se ela fosse quase um autômato, obedecendo a Jesus. Jesus pede que ninguém deles divulgue o que aconteceu, e não sabemos o que eles fizeram. Seja como for, é um relato que nos deixa encucados, porque as pessoas reagem com incredulidade à fé, e por outro lado que nós mesmos também reagimos com incredulidade. Pois assim percebo que o relato nos coloca em questão o tempo todo, e portanto que nós nos colocamos em questão o tempo todo com respeito à fé.
O relato continua, sendo que Jesus agora retorna a Nazaré, de onde ele era. Pois ali ele é recebido com desconfiança, falta de fé mesmo, e é quando ele fala que o profeta não o é em sua terra. Estamos no capítulo sexto, e percebemos que as pessoas duvidam em especial porque conheciam Jesus e sua família, sabiam de onde ele havia vindo, e por isso duvidavam que ele pudesse ser encarnado, tal como mostrava ser. É curioso que as pessoas duvidem justamente porque ele sabia algo que as pessoas viam, mas que não sabiam de onde havia vindo. Por outro lado, vejo também que ali as pessoas usam - ou o texto usa - o verbo escandalizar para falar sobre como as pessoas recebiam Jesus ali. Pois tudo era difícil demais para todos aqueles, que não tinham fé. Pois ali Jesus não conseguia fazer muita coisa, curava uns e outros, mas não conseguia se destacar no meio daquela gente. Também vemos como ali Jesus é dito que não conseguiu fazer milagres, e como ele ficou admirado - é esse o termo - com a falta de fé de todos eles. Curioso também que ali Jesus ensinasse nas sinagogas, mas que ali ele não fosse tão bem recebido como fora delas. Ou seja, Jesus tinha espaço nas margens, não conseguia ser aceito realmente nas instituições. Porque não o entendiam, ou porque não o aceitavam, ou porque não compreendiam o que ele realmente queria dizer. Vemos que ele falava muitas vezes por parábolas. Mas aqui nem elas pareciam fazer algum efeito. Notemos que Jesus ensinava, que ele dizia a palavra, que ele parecia rondar para ser ouvido e aceito tal qual era, mas que ao mesmo tempo isso fazia todos o recusarem, como se evitassem olhar para a luz do Sol.
É neste momento que Jesus passa a guiar efetivamente os seus discípulos. É curioso que ele o faça dois a dois, e que ele lhes dê o poder para tirar demônios e curar, e que eles, os discípulos, sejam pessoas bastante ignorantes, cujo único atributo aparentemente claro seja a fé. É também neste ponto que Jesus determina como eles devem se vestir, como eles devem entrar nas aldeias, como eles devem se comportar, inclusive diante de gente que não acredita neles. Por sua vez, ele lhes estabelece critérios bastante duros, de humildade e simplicidade, e percebemos como isso foi se perdendo com o tempo, foi se tornando uma instituição cheia de repreensões diversas com respeito a vestimentas e tudo o mais. Por outro lado, sua mensagem, se não se perdeu, se diluiu sim, e percebemos como isso fica claro na prática das pessoas, muito atentas a gestos e palavras determinadas, e não mais ao poder e ensinamento de quem sabe realmente a que veio. A questão aqui, também, é da pregação, ou seja, do chamado à conversão, e também a que as pessoas abandonassem espíritos imundos, sujos, maus. Em seguida vem uma narrativa histórica, em que Herodes aparece, sabendo de Jesus, e em que o episódio em que ele corta a cabeça de João Batista vem à tona. Curioso que o relato fique partido, aqui, e que percebamos claramente a situação histórica em que Jesus vivia.
O relato histórico, ou próximo ao histórico, não irei detalhar. Mas logo a seguir a narrativa é retomada, e aparecem os discípulos contando para Jesus tudo o que haviam feito e ensinado. É curioso, porque normalmente imaginamos Jesus sozinho, falando para as multidões, como um Martin Luther King, quando ele no fundo era acompanhado por gente que nele acreditava e que, segundo seus desígnios, fazia coisas diversas. Pois aqui notamos que havia uma vontade muito férrea por parte de Jesus de espalhar alguma coisa, a palavra. Por sua vez, o lugar é lotado, as pessoas vão e vêm, e vemos então a Jesus envolto numa espécie de roda gigante, segundo a qual ele estaria no meio, no centro, e em que muito aconteceria, mas o mais importante, aparentemente, ficaria de fora. É quando Jesus pede para ir a um lugar distante para falar com seus discípulos, inclusive entrando numa barca. Imaginem que isso deve ter levado um bocado, a não ser que eles morassem claramente no litoral. Por sua vez, Jesus queria que os discípulos descansassem. Notem como aqui há uma vontade muito grande de Jesus em relação a eles, que deveriam estar envolvidos até a medula por sua missão. A gente quase pensa naqueles caras cheios de gente que os segue, como nos filmes. Ocorre que aqui Jesus parece condoído por seus discípulos, e por isso pede para que todos encontrem o seu lugar e descansem. É como se isso fosse sobremaneira necessário. Mas as multidões os seguem, isso é interessante, e não os deixa em paz, chegando nos lugares antes de todos eles. É uma narrativa cinematográfica, quase.
O que vemos hoje é que as narrativas de Jesus são sempre focadas especialmente nos milagres que ele fez. Neste caso, logo a seguir, entra em questão a multiplicação dos pães e dos peixes. Não que ele, o milagre, não seja importante ou relevante. São. Mas o problema é focar-se excessivamente no resultado, e não nas condições em que ele, o milagre, aconteceu. Naquilo que efetivamente estava envolvido, e no status dos envolvidos, na medida em que eles se entregaram àquilo que aconteceu. Pois vejamos aqui este milagre em especial. Notamos que Jesus sai da barca então. Vemos que as pessoas parecem não deixá-los em paz. Ou seja, os abordam, desesperadas, como vemos em muitas fotos de populações em pânico. Pois é aqui que aparece a imagem (não sei se pela primeira vez) de ovelhas sem pastor. O relato é singelo. Quando saiu da barca, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão, porque elas estavam como ovelhas sem pastor. Hoje as imagens de pastor e de ovelhas é comum. E também aqueles que se opõem a isso, que evitam se considerar como tal, como ovelha em busca de pastor. Ocorre que aqui é apenas uma comparação, por um lado, e por outro lado que o relato é de imagem, Jesus saindo da barca e vendo uma multidão, pela qual teve compaixão e que comparou a ovelhas sem pastor. Pois sem entendermos que ele, o Filho de Deus, sentiu compaixão, e que assim sendo ele se sentiu condoído por todos aqueles que ele tanto amava, fica difícil entendermos o milagre. Sendo que o milagre se dá em termos de pães e peixes (lembremos o papel do pão posteriormente).
Em seguida, mesmo tendo tido tanta compaixão por seus seguidores, Jesus começou a ensinar muitas coisas para eles. O tempo então passou, e foi longo pelo visto, tanto que ficou até tarde. Curioso também que o relato não fale o que Jesus ensinou. Isso passa batido, como se não tivesse importância, e nisso percebemos que o relato não se propõe ser um relato de professorado, explicando o que Jesus teria dito, mas o que ele teria sido e o que ele teria feito. É interessante pensarmos dessa forma, até porque, se Jesus tivesse apenas vindo ensinar pelo aprendizado, e não pelo exemplo, e por sua própria existência, teria sido mais um professor da lei, mais um acadêmico, que simplesmente veio para deixar testemunho do que soube por meio da mente, do intelecto, quando ele se tornou algo, se não maior - para quem não acredita -, totalmente diferente e transformador. Aí vemos que os discípulos, tal qual os seguidores de pessoas comuns, aparecem meio que trazendo Jesus à realidade daquele momento, e dizendo-lhe que estava ficando tarde e que portanto as multidões poderiam ir para suas origens comprar algo para comer. Note-se o tom com que isso é falado. É quase como se eles dissessem para Jesus, mestre, eles não vão aguentar, libere-os para que eles possam comprar algo em seus lugares. Pois aqui tem um aspecto revelador. Jesus diz, afirmando, até quase ordenando, que são os discípulos que lhes têm de dar algo para comer. Ou seja, que isso era tarefa deles, dos discípulos. É curioso, porque Jesus não se põe simplesmente a pegar o que tinham e a repartir. Ele manda os outros a alimentar o rebanho. Em seguida, os discípulos dizem, quase lamentando que terão de gastar para isso, que seria necessário meio ano de salário para comprar pão para todos. Ou seja, é como se os discípulos estivessem lamentando não conseguirem ou não quererem alimentar todos. Pois é quando praticamente vemos Jesus olhando para o lado, e perguntando, o que é que vocês têm? É quando os discípulos respondem com o pouco que têm e o parágrafo termina. É claro que depois vem o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes.
Há diversos aspectos a ressaltar nesse milagre. Primeiro, Jesus ordena as pessoas, faz com que fiquem em grupos. Ou seja, as pessoas não ficam como numa multidão, em separado umas das outras, e com um senso de anodinismo. Não, aqui elas ficam em grupos, e percebemos que isso tem um sentido maior do que apenas o de facilitar a distribuição dos pães que virão a seguir. No caso, quando do milagre, o que faz Jesus? Ele pega os pães e os dois peixes, ergue os olhos para o céu, faz as bênçãos e os parte, dando-os aos seus discípulos, sendo que estes os distribuíram. Nota-se que o sentido da cerimônia é religioso. Ou seja, Jesus não apenas faz com que os pães e os peixes se tornem em maior número do que eles são, mas ele os oferece a Deus, os abençoa e com isso o sentido da multiplicação fica patente. Não é apenas um milagre, tal como imaginamos, algo que acontece sem explicação. É uma expiação a Deus que se torna um milagre, e que passa a alimentar a todos. Nota-se que Jesus parece que nem come, embora se diga que todos comeram. Pois parece que ali a questão era de saciar a fome dos que precisavam, e Jesus parece nunca precisar realmente de nada - como quando conversamos com alguém superior a nós, e que também parece não precisar de nada. Nota-se que depois de tudo sobraram muitos pães e peixes, e que tudo é contato. Ou seja, isso dá verossimilhança ao relato, assim como nos espanta. Pois sentimos que realmente aconteceu. Ocorre que o sentido mais íntimo de tudo parece perder-se. Como sempre, ficamos com os sentidos mais claros, mais expressos, e perdemos o ponto de vista mais altaneiro, mais avançado.
Mas Jesus continua mandando, nesse seu afã por passar a verdade. Nesse mandonismo, Jesus obriga os discípulos a irem à frente rumo a Betsaida, enquanto ele despedia a multidão. Logo depois, ele se despediu e foi rezar. Nota-se como existem trechos em que Jesus reza, em que se afasta e fica sozinho com Deus. Pois aqui o relato adquire quase ares de sonho. Vemos os discípulos remando na barca, e Jesus do lado de fora, em terra, olhando-os, enquanto eles experimentam dificuldades. Pois eis que Jesus de repente vai até eles, mas andando pelo mar. Ou seja, ele como que os acompanha, e os segue, mas ao mesmo tempo os lidera, e vai à sua frente. Claro que todos ficam assustados, e pensam ver um fantasma. Ocorre que nisso percebe-se como eles não acreditam no que vêem, e como aparentemente - como é dito depois - é o seu (deles) coração endurecido que causa isso. Esse relato é bastante estranho, onírico, e parece não ter função nenhuma de ensinamento ou de algo religioso. Outros considerarão que ele ocorre apenas para dizer que Jesus podia fazer aquilo, andar por sobre as águas, ou que ele de certa forma estaria se exibindo nesse seu poder. Ocorre que percebemos algum sentido mais íntimo, como que Jesus seguindo os seus discípulos, e os acompanhando, não sendo porém deste mundo. É como se Deus estivesse com isso dizendo que ele também nos acompanha, que está ao nosso lado, mas que não segue a nossa lógica, não precisa remar, se esforçar, para andar na vida. Até porque ele está para além dela. Nota-se também que ao final se aborda ainda o acontecimento dos pães, e como os discípulos não teriam compreendido, e como isso revelaria a falta de fé deles. Pois aqui, ao verem Jesus andando sobre a água, e ao ficarem assustados, isso também vem à tona. Percebemos as vezes em que nós mesmos parece que não acreditamos naquilo que nos acontece. Como se fossem milagres.
É curioso perceber como os relatos aparecem de forma simples e mesmo simplória, e como nós, que os lemos e que necessariamente viemos após eles, os consideramos de forma excessivamente literal ou mesmo metafórica. Quando eles não são como textos de Filosofia. Eles são simples relatos. Sabemos que Marcos aqui foi contratado para escrevê-los, até porque ele não acompanhou Jesus em suas andanças. Sabemos que sua escrita foi em função da morte de Pedro, que queria deixar algo que substituísse os discípulos e que desse forma à nova religião. Sabemos que este foi o primeiro relato a ser escrito. E sabemos também que Marcos foi considerado santo muito posteriormente. Por outro lado, percebemos um frescor no relato, e também entendemos que aquilo que está escrito aparece como testemunho, antes de mais nada. Ou seja, como uma espécie de confirmação de algo que teria acontecido. Por outro lado, sabemos que a verdade, no sentido filosófico, aparece de três formas especiais, como disse Julián Marías (e a Marilena copiou): como revelação, como promessa de fidelidade (confiança) e como veritas, como relato. Neste caso, estamos como relato, mas um relato que nos intima a confiarmos. Ou seja, é algo mais ou menos complexo e intermediário, que vai do fato à fé. Por outro lado, seguindo o relato, vemos como aqui Jesus simplesmente desce da barca e é abordado por mais e mais pessoas, que lhe levam doentes, para que ele os cure. Pois aqui percebemos como o relato insiste na questão de que, por fé, Jesus fazia tudo o que fazia, e que as pessoas, percebendo a possibilidade de se curarem, iam de distâncias consideráveis até ele. Percebemos o poder do relato, na medida em que percebemos a urgência dos pedidos, e ao mesmo tempo a passagem de Jesus pela terra, sendo que os outros iam até ele, embora ele quisesse atingir a todos.
Os próximos trechos de Marcos são amplos e pegam, para serem compreendidos em sua integridade, desde o começo até quase o fim do capítulo 7, mais apropriadamente até 23. Podemos, claro, encarar esses trechos em partes, mas a compreensão surge na verdade em seu conjunto. Tudo começa quando os fariseus (que eram extremamente fiéis à Lei, tanto que Paulo, na época Saulo, era de origem farisaica, e não era um rebelde com a religião judaica, muito ao contrário), quando eles se reúnem com Jesus e observam que seus discípulos comem sem lavar as mãos. Nota-se aqui como existe toda uma intenção nessa pergunta, e como a gente nota que o cerco se fecha diante dele. Pois há uma má vontade bastante explícita nessas perguntas, e no porquê de certos questionamentos. Pois percebe-se que aquelas pessoas vêem o que Jesus faz, mas que no fundo não querem saber, não querem ver, não querem acreditar. Isso acontece também com pessoas que fazem algo bom, mas que nós não queremos ver, porque seu jeito, ou seu perfil, destoa daquilo que esperamos que possa vir de bom para nós. Quantas vezes não fazemos isso, por puro preconceito ou por encarar a pessoa de outra forma que não a cristã? Pois vemos aqui que os que abordam Jesus perguntam por que é que os seus discípulos não seguem a tradição dos antigos. Note-se que eles perguntam quanto a por que desobedeceriam a tradição, enquanto não se atêm ao fato daquilo que eles são, de como se comportam, daquilo que dizem, daquilo que expressam, e mesmo daquilo que fazem. Eles se atêm a esses detalhes, e Jesus nesse caso fica encolerizado. Porque é procurar uma desculpa para condená-los. Porque isso fica bastante claro na hora.
Neste ponto, a oposição é clara. Os homens em questão são chamados de hipócritas por Jesus, e porque seguem o Deus pelos lábios, mas não pelos seus corações. Neste caso, é bastante clara a oposição - entre seguir expressamente e não pelo coração - e todo aquele que quer seguir Jesus sabe bem do que está sendo dito. Jesus também insiste em que não adianta de nada prestar culto se não se segue com o coração. Mas o que seria isso? Para aquele que pensa simplesmente naquilo que está acontecendo, parece pouco. Mas para quem ficou a vida inteira sem direção e para quem a encontrou seguindo seu coração parece algo mais importante. Em seguida, porém, Jesus continua, e aborda outros mandamentos de Moisés, e como as pessoas seguem as tradições mas não respeitam os mandamentos, porque não seguem seus corações. Porque fica claro aqui que Jesus não insiste nos mandamentos como ordens, como algo a ser obedecido por temor, mas por algo a ser seguido pelo coração. Porque aqui a questão é sempre bem clara: seguir o coração, que no final das contas consiste no mandamento de Deus. Nota-se que Jesus aborda um preceito que estaria na tradição que dispensaria a pessoa de honrar e ajudar o pai e a mãe. E que no caso ele sabe muito bem que as pessoas costumam usar dessa tramoia para não obedecerem o mandamento e para não seguirem seu coração. Pois é isso o que Jesus no fundo quer dizer.
Em seguida, Jesus chama a multidão e lhes diz aquelas palavras já clássicas quanto ao mal que sai de dentro da pessoa, e do fato de que nada que entra na pessoa lhe é responsável pelo seu mal. No caso dessa maldade, ela é tratada como impureza. Ou seja, na medida em que se opõe a algo que a pessoa diria buscar, uma certa pureza. Pois Jesus é abordado insistentemente pelas pessoas, que querem entender a parábola. Mas isso é bastante claro, o que ele diz aqui. Isso, Jesus aborda quanto aos alimentos que as pessoas ingerem, que não são necessariamente impuros, mas que a impureza estaria no espírito da pessoa que prefere fazer o mal. Neste caso, o coração também está em questão, pois ele aborda claramente que seria de dentro do coração das pessoas que sairia o que é mau, originário de maldade, e que seriam essas coisas que tornariam a pessoa impura. Claro que aqui ele se opõe a preconceitos ou a costumes da época, e que também se impõe diante de pessoas que simplesmente querem cumprir preceitos, ao invés de seguirem uma voz que está dentro delas. A voz da salvação, que Jesus apenas retira para fora, como se estivesse parindo e fazendo as pessoas renascerem.
Mas a gente sente em todo o relato uma profunda carência. Uma carência tal que beira a ignorância. Pois notamos como os ignorantes, aqueles que menos sabem, eram que não sabiam a quem recorrer. E como Jesus fazia o que fazia entre eles, e fazia o seu sucesso entre eles. Gente desesperada, que acreditava em qualquer coisa, contanto fizesse a sua parte, causasse o seu efeito. Neste caso, ficava difícil entender para elas que Reino era esse que ele prometia, que rei era esse que ele parecia ser, e o que ele dizia quando comentava certas passagens. Como quando ele é abordado por uma mãe em busca de salvação para sua filha, que estaria dominada por um demônio. Pois vemos Jesus meio arrogante, falando sobre a fome saciada para seus filhos queridos, e que não cabia bem dar o que comer aos cachorrinhos, ao invés de para eles. Ocorre que a mulher retruca, pedindo migalhas. Nesse ponto, Jesus parece comover-se com a fé dela, e lhe diz que sua filha está curada, ela volta e é isso que acontece. Note-se que tudo isso ocorre num momento em que Jesus se esconde, não quer ser encontrado. Ou seja, num momento de reclusão, em que ele permanecia indefeso, sem pessoas ao seu lado, e sem ninguém a claramente anunciá-lo como o filho de Deus. Ou seja, a moça só confiava mesmo naquilo que o coração lhe dizia, que ele podia arrumar uma solução para seu problema. Neste momento do relato, são mostrados outros milagres que Jesus teria feito, mas sempre com a intenção, por parte de Jesus, para que não contassem nada a ninguém. Ou seja, Jesus esperava sua hora. Mas a fama dele se espalhava. Note-se também que Jesus andava muito, por regiões imensas, mas que isso aparece como de menor importância. Nota-se também que as pessoas é que aparecem para ele, que lhe levam pessoas para serem curadas, e que isso surge meio que de supetão, sem que nos apercebamos. Todos os seus milagres, claramente, ocorrem por um pedido ao céu, por um suspiro, por uma bênção, por algo desse tipo.
Curioso, neste ponto do relato, como a trajetória de Jesus parece clara, aparece claramente, como a de um sujeito especial que dizia ter uma boa nova, que dizia ser aquele que iria fazer e acontecer, num momento em que as populações ansiavam por um Salvador, mas não se restringindo a trazer tudo para si. Ele como que andava pelos lugares, sem se identificar, sem grandes alardes, fazendo o que precisava, fazendo o que lhe pediam, ensinando, e com isso se aprontando para o momento em que iria trazer o novo reino para todos. Pois é curioso também como ele, quando cura, embora não o faça escondido, também não o faz para chamar a atenção, muito ao contrário, avisa para que não digam o que aconteceu, e com isso ele também se dá mais tempo para o seu momento em particular, quando iria se sacrificar por nós. Pois vemos isso agora sem a aura colhida pela tradição, e com isso vemos mais claramente, e percebemos que havia motivos para que ele fizesse tudo do jeito que fez. Isso fica claro quando ele dá a audição a um surdo, quando ele o faz afastando-o da multidão, e ao mesmo quando ele pediu para que não contassem a ninguém. Pois vemos aqui que ele pretendia manter uma discrição muito elevada, ele pretendia continuar sua trajetória, sendo que a surpresa é mais das pessoas que o vêem indo e vindo, fazendo o que deve, e todos se perguntando quem seria ele.
Nesse momento do relato, há novamente uma ocasião em que ele está com uma grande multidão que não tinha nada para comer. Peguemos esse caso para nos referirmos a como vemos pessoas especiais atualmente, ou sempre. Vemo-las como pessoas que naturalmente trazem abundância, das quais nos aproximamos porque irão nos dar coisas, porque com elas iremos prosperar. Mas aqui não vemos isso. Vemos Jesus seguido por multidões que não tinham nada, nem para comer, e que ele de repente se vê diante da situação incômoda de ter tanta gente como que dependendo dele. Pois ele aqui comenta que a multidão está há três dias com ele, e que ele sente compaixão por ela, porque eles não comeram nada. Note-se que ele não se preocupa naturalmente por aquilo que eles têm de comer; ele se preocupa porque não pode dispensá-los, dado que eles não resistirão à jornada de volta. Os discípulos, neste caso, se perguntam de onde poderia vir aquilo que poderia saciar a fome da multidão. Pois Jesus simplesmente lhes pergunta quantos pães têm, como se não fosse nada. Pois tudo ocorre como se não fosse nada, como se simplesmente ocorresse, como se ele não estivesse em busca de um milagre, ou tentando mostrar um milagre para todos. Tudo ocorre por uma necessidade mesmo, por um evento que acaba acontecendo, e por outro lado ninguém mostra como o milagre aconteceu. Ele simplesmente acontece à vista de todos e ninguém se surpreende, aparentemente. Ou seja, é como se tivesse de ser assim. Nesse momento, me lembro de todas as vezes - e foram muitas - em que praticamente não tinha nada, em que não sabia como iria me virar, e em que algo aconteceu, e que quando aconteceu aconteceu de forma naturalizada, como se tivesse de fazê-lo, como se não fosse resultado de esforço ou de algo maior. Pois é interessante isso, porque hoje não consigo reconstituir os momentos, mas foram muitos, e todos aconteceram dessa forma. É muito estranho, porque também sempre acontecem quando menos espero, embora eu tenha esperança neles. Ou seja, eu não desespero, eu espero, tenho esperança.